terça-feira, 11 de setembro de 2007

Uma noite no El Bulli – Parte 1


Quinta-feira, 7 de junho de 2007. Oito e meia da noite. Através da ampla varanda do Hotel Terraza, um sol atrevido invade nosso quarto. É noite de Corpus Christi. Lá fora, contrariando as convenções, nosso astro-rei teima em brilhar no céu azul da calma, bela e mediterrânea Praia de Roses, cerca de 135 km ao norte de Barcelona.


Eu e minha mulher, Larissa, estamos exatamente onde queríamos estar. O calor do sol que chega a nós, ainda tímido como costuma acontecer nos finais de primavera aqui pelas bandas da Catalunha, no nordeste da Espanha, é suficiente para aquecer os momentos que antecedem nosso aguardado encontro com a ousadia e a criatividade de um gênio da gastronomia mundial.

Encastelado em seu surpreendente restaurante, Ferran Adrià nos aguarda, e a todos os seus clientes desta noite, pronto para mostrar que sempre é possível reinventar e melhorar o que já é ótimo.

Fico pensando nele, lembrando suas entrevistas e sua tão taxativa quanto recorrente afirmação de que no El Bulli se faz o que ele batizou de “nouvelle-nouvelle cuisine” (e nada dessa história de cozinha molecular!). Fico pensando também no quanto foi complicado, difícil mesmo, chegar a esta noite.

Foram três anos de espera. Três anos de fila. Três anos tentando a reserva para a noite do meu aniversário. Reserva que só pode ser feita pela internet, e por um curto período, pois o restaurante tem pouco mais de 20 mesas e só funciona cinco noites por semana, durante apenas seis meses por ano! Ou seja, faltavam vagas, as listas de espera estavam sempre completas e o site do El Bulli orientando: “Tente ano que vem”. Insisti, insisti, consegui!

Fico pensando em tudo isso e me atraso!

Insistente, o telefone do quarto toca pela segunda vez em 10 minutos. São oito e quarenta. O sol segue brilhando e, lá na recepção, um ansioso taxista ameaça ir embora sozinho. Com o típico humor catalão, o homem não entende nosso “enorme” atraso de poucos minutos. Fico na dúvida se ele entende que somos nós os mais ansiosos para percorrer o trajeto combinado.

Nossa reserva no El Bulli é para as nove da noite. Distante cerca de 25 km da Praia de Roses, o restaurante está localizado no topo de um morro que delimita uma pequena enseada – a Cala Montjoi. O percurso até lá leva 30 minutos.

Precisamos vencer uma pequena serra. O desenho sinuoso, de pista estreita, com suas dezenas de curvas fechadas e sem proteção lateral, torna a pequena estrada absolutamente desafiadora para os turistas que pensam em se aventurar dirigindo. A volta, então, após vinhos, cavas e licores, torna-se um perigo brutal, com precipícios dos mais variados tamanhos logo ali ao lado.

Menos mal que o próprio El Bulli orienta a ir de táxi. E, por falar nisso, nosso irritadiço taxista é um ás do volante, uma espécie de Ayrton Senna da Praia de Roses, que domina aquelas curvas com uma tranqüilidade parecida com aquela que o nosso eterno campeão mostrava nas apertadas ruas do circuito de Mônaco. Assim, ao contrário do que pensávamos, chegamos na hora! E como prêmio por sua pilotagem, marcamos com nosso taxista o retorno para o hotel.

O estacionamento do El Bulli – um amplo espaço calçado com uma camada de fina brita e encravado entre a montanha e o mar – está vazio para um lugar tão concorrido. Estranho. São apenas dez carros. De fato, com uma estrada daquelas, talvez até sejam carros demais.

Aproveitamos para fazer fotos. Eu, ela, sempre um ou outro, como aquelas fotos dos casais que saem em lua-de-mel e as únicas fotos nas quais ambos conseguem aparecer são as batidas por garçons, barraqueiros, taxistas ou outros turistas. E o pior: nem todas com um padrão de qualidade aceitável.

Está na hora. Vamos entrar.

A brisa vinda da Cala Montjoi, com leve odor de frutos do mar, parece estar ali para dar um empurrãozinho em quem costuma ficar com aquele frio na barriga, mãos úmidas e pernas pesadas diante do desconhecido. É como se estivéssemos indo abrir aquele quarto cheio de presentes de aniversário guardados durante a festa. A surpresa é inevitável. A taquicardia também. Aí é torcer para que tenha valido a pena esperar. E valeu!

Os dois pinheiros altivos e bem podados na entrada do restaurante mais parecem dois gigantes guardiães dos segredos do El Bulli e de sua fantástica trupe de garçons, maîtres, sommeliers e cozinheiros. Logo após passar por esse verdadeiro portal da criatividade, um pequeno lance de escadas surge para nos levar ao hall de entrada da bela casa branca, repleta de toras de madeira envernizada que formam sua estrutura e assumem a responsabilidade de contar um pouco da história dessa ousada e simpática construção dos anos 50.

Finalmente, aparece o primeiro integrante da equipe. É Don Luís García. Amável e sistemático, leva-nos para conhecer a cozinha do El Bulli. Foi uma surpresa. Logo na chegada! Lá dentro nos mostra as áreas específicas de preparo dos molhos, dos doces, dos quentes e dos frios. A equipe é grande e todos vestem branco. Uma enorme cabeça de touro dourada enfeita o local, que é amplo, limpo e na cor azul. É tudo muito rápido.

De repente, ele: Ferran Adrià.

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A segunda parte dessa história de uma noite memorável no El Bulli eu posto amanhã. Até lá.

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