quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Uma noite no El Bulli – Parte 2


O chef mais badalado do mundo surge para nos cumprimentar como, certamente, o faz com todos os outros convidados. É de praxe. Mais gordinho e calvo do que nos acostumamos a ver nas suas fotos de divulgação, Ferran Adrià nos dá as boas-vindas e se certifica de que somos nós os brasileiros da noite. Lacônico, despede-se dizendo que o gourmet que ele mais respeita no mundo é brasileiro. Só não quis dizer o nome do nosso conterrâneo.

Começamos bem.

Em seguida, Don Luís García nos leva para uma mesa na ampla e charmosa varanda da casa, onde alguns lugares já estão ocupados. No caminho, cumprimentamos Juli Soler, sócio de Adrià e um dos grandes responsáveis pela evolução do El Bulli. Na varanda, mesas de madeira, cadeiras confortáveis, piso e muretas de pedras diversas, além de uma ambientação perfeita em cada detalhe, indicam tratar-se de uma discreta e aconchegante casa provençal.

Dois outros casais em diferentes pontos da varanda ocupam mesas de frente para o mar. Na mesa mais bonita, um grande e barulhento grupo. Para minha inveja, todos já apreciavam as famosas entradas e snacks, acompanhados por martinis e cavas. E pareciam estar gostando. Deu água na boca.

Ficamos numa mesa mais próxima da entrada do salão principal e da cozinha. Dali era possível sentir agradáveis odores vindos lá de dentro. O que não dava nem para desconfiar era a quantidade de profissionais que passariam a nos atender.

Funciona mais ou menos assim: cada grupo formado por um maître, um sommelier, dois, três ou quatro garçons (dependendo do tamanho da mesa) e alguns ajudantes fica responsável por um grupo de mesas. Detalhe: todos poliglotas. Nosso sommelier, por exemplo, falava perfeitamente cinco idiomas (espanhol, catalão, inglês, francês e italiano). E uma das garçonetes catalanas falava japonês fluentemente!

Confesso que para nos acostumarmos com tantos rostos novos ao mesmo tempo demora um pouco. A cada instante surge um diferente. Todos impecavelmente vestidos de preto e com uma quantidade relevante de informações sobre o menu-degustação, a casa, o Ferran Adrià, a carta de vinhos. Mas ninguém diz exatamente o que iremos comer. E esse é um dos saborosos mistérios do El Bulli: o cardápio do dia é surpresa! O chef Ferran Adrià cria uma grande quantidade de pratos para a temporada de seis meses. Mas serve “apenas” entre 30 e 33 pratos por cliente. Assim, cada mesa tem uma combinação diferente –, cada menu é personalizado. Coisa de quem sabe fazer bem feito.

Na varanda (e com a noite ainda por cair), nossa jornada gastronômica começa com um welcome drink que já deixa claro do que o El Bulli é feito. Na taça, martini de melão com cinco avelãs estufadas. Para cada avelã, um gole. Inesquecível a combinação. Para acompanhar, aquela que talvez seja a mais famosa das iguarias do mestre Adrià: azeitonas verdes esféricas (na verdade, cápsulas com pele de azeitona que abrigam um líquido quase pastoso preparado à base de azeites especiais). Detalhe: elas são geladas por fora e quentes por dentro. Começa aí um festival de sabores, texturas e surpresas que só irá acabar quatro horas e meia mais tarde.

E aparece o sommelier! Com ele, nosso primeiro problema: a carta de vinhos, de tão extensa, mais parece um livro sobre a história do mundo. E que mundo! França, Itália, Espanha, Portugal, Austrália, EUA, Chile, África do Sul. Estão todos lá, numa espécie de Nações Unidas do Bom Gosto.

A carta fica para que a estudemos. Mas como harmonizar sem saber o que vamos comer? Don Miguel, o sommelier, volta com um sorriso maroto, como se já soubesse que da nossa mesa viria um pedido não de vinhos, mas de socorro. No entanto, nós surpreendemos. Para facilitar, determinamos que só tomaríamos bebidas catalãs. Afinal estamos na Catalunha, o restaurante é catalão, o chef é catalão. Pronto. Conquistamos o sommelier Don Miguel.

Ele nos explica que o menu será dividido em cinco partes: entradas e snacks diversos, “pratos” frios diversos, “pratos” quentes diversos, postres e avant-postres. Assim sendo, nos aconselha a iniciar com o espumante cava, passar para o vinho branco lá dentro do salão e, a partir dos pratos quentes, seguir com os tintos. Sempre catalães.

Ainda na varanda, a degustação começa a assumir ritmo mais intenso, quase frenético. Frutas lyosificadas surgem na forma de palitos de abacaxi leves como espuma seca. Merengues e profiteroles de beterraba e iogurte se desintegram à mais leve mordida – é preciso comê-los de um só golpe.

Três falsos chocolates salgados em barra trazem sabores conhecidos de pistache, iogurte e cassis em texturas inimagináveis. Pequenos pastéis de gorgonzola doce dão um poderoso golpe na minha tentativa de entender o que está acontecendo. Nossos sentidos se confundem. Estão absolutamente estimulados. Mas como entender que o salgado é doce, que a beterraba é branca com gosto de iogurte – como lidar com essa verdadeira estripulia que o mestre Adrià faz com nossos sentidos?

Decidimos relaxar e tentar aprender algo de novo. Até porque, a cada prato trazido à mesa nosso maître explica o que é e como deve ser comido. Sim,
pois até a ordem da ingestão dos produtos é fundamental para sua melhor apreciação.

Ah, e das trinta e poucas iguarias servidas, doze são levadas à boca sem o auxílio de talheres e a maioria dos pratos servidos na degustação são apresentados em travessas fantásticas, com design ousado e orgânico feito especialmente para o El Bulli. Faz parte do show.

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A terceira e última parte dessa história de uma noite memorável no El Buli eu posto amanhã. Até lá.

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