quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Uma noite no El Bulli – Parte 3 (final)


Após algumas taças de cava, trocamos a varanda do El Bulli pelo salão, onde o show continua. Belo, discreto e elegante, o salão abriga diversas mesas laterais, algumas poucas centrais e outras tantas em agradáveis cantinhos com paredes de pedra e confortáveis sofás. É numa dessas que ficamos.

Na parede ao lado, um quadro com uma curiosa foto dos Rolling Stones nos anos 60. Nela, presenteada a Ferran pela própria banda, os músicos estão numa grande sala vestidos alegoricamente e largados no chão em meio a dezenas de metros de panos coloridos. No meio de tudo, sem razão aparente, um cachorrinho compõe o cenário lisérgico. Na verdade, um buldogue. Por isso o presente. Afinal, El Bulli quer dizer “o buldogue”.

Voltando à mesa, o ritmo segue intenso.

Mais uma seqüência de exóticas combinações acontece diante de nós. Começa com um fantástico “airbag” de parmesão, leve como uma pluma e inacreditavelmente suave. Aparecem curiosos biscoitos de pistache com leite ácido, espumas de abacaxi e pinha, além de um alucinado bombom de tangerina, amendoim e – pasmem – curry! Mas as surpresas não param. E essa gostosa confusão cerebral promovida por Ferran Adrià vai mexendo com nossas referências.

Chega então um inesquecível fondant de framboesas com wasabi branco e vinagre também de framboesas. A seguir, uma mini-seqüência com um trio imbatível: iogurte de ostras com peixe em tempura, trufas geladas de cenoura com estragão e passas de pêssego, judión con panceta Joselito (são os “ervilhões”, duas cápsulas com recheios de uma pasta de ervilhas finas encharcadas por um creme leve e suculento). E mais, mais, mais.

Curioso. Ainda não estamos cheios.

Chegam agora merengues, risoto de cítricos, nhoque de polenta com café, açafrão e margarita, sensacionais aspargos em cinco sabores, algas marinhas, topinambour com bacalhau, arraia e até sopa de manteguinha noisette com cérebros de coelho (bem, esse eu dispensei e Larissa não deixou nem servirem).

A essa altura, começávamos a encalhar. Foi então que nosso maître fez uma parada estratégica (ah, o ritmo quem comanda é ele, e até para ir ao lavabo temos que pedir ao maître, pois os pratos chegam um após o outro e tem que ser tudo no tempo certo). Ele justifica a paradinha: “Chegou a hora do parabéns”. Na verdade, uma breve e diplomática salva de palmas dos outros clientes enquanto era montada na minha frente uma torta de papel com uma vela de verdade no topo. Eles acharam engraçado. Nós gostamos da delicadeza.

Vida que segue. Sobremesas que começam a chegar. Não creio que consigamos aproveitar tudo que ainda vem por aí. Ledo engano. Após uma delicada “lã” de avelã e algumas frutas embebidas em cerveja preta, vinhos e vinagres, nossa maratona gastronômica chega ao fim com uma seqüência de morphings que encerram com categoria essa festa de sabores, cores e texturas. Conseguimos. Agora sim, estamos satisfeitos.

Mas ainda falta um molho especial para fechar a noite: uma foto com aquele que é o principal responsável por uma verdadeira revolução na forma de pensar e produzir gastronomia no mundo atual, transformando as receitas do El Bulli numa linguagem em que a argumentação criativa é o principal ingrediente.

Somos os últimos a deixar o salão. Ferrán Adrià está se preparando para a primeira de duas entrevistas da noite (são duas da manhã!). Antes de começar, permite que façamos nossa foto a seu lado. Ao contrário de quando chegamos, agora ele se solta um pouco mais.

Em cinco minutos de conversa na cozinha, ele nos pergunta sobre o Brasil, afirma que somos o povo mais privilegiado do mundo quando o assunto é a variedade de alimentos disponível, informa que pretende estar no país em janeiro ou fevereiro e, em seguida, se despede educadamente.

Numa última frase, digo a ele que tentarei voltar em 2008. A resposta, mais uma vez lacônica, já indica a dificuldade do porvir: “Hay que intentar”! E, sorrindo, vai para o salão ao lado conceder mais uma entrevista.

A nós, restou o que já começa a se transformar em lembranças de uma noite especial: comprar um belo livro com tudo sobre a temporada de 2005 e encontrar nosso irritadiço taxista no estacionamento do El Bulli.

Sexta-feira, 8 de junho de 2007. Duas e meia da madrugada.

No sinuoso caminho de volta para o hotel, fico pensando em meus outros aniversários, no nosso filhinho que nos espera em Brasília e no poder transformador da ousadia e da criatividade. Enquanto isso, a meu lado, Larissa dispara: “Toda essa história de ‘melhor restaurante do mundo’ serviu para que a gente descobrisse que essa tal evolução da culinária ocidental é capaz de preservar a honestidade e a simplicidade que todo grande prato precisa e merece ter”. Larissa é mesmo muito especial. E acho que vou aprender a cozinhar.

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